Hans Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881 — Berkeley, 19 de abril de 1973) foi um jurista e filósofo austriaco, um dos mais importantes e influentes do século XX.
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Judeu, Hans Kelsen, foi perseguido pelo nazismo e emigrou para os Estados Unidos, onde viveu até seus últimos dias e onde exerceu o magistério na Universidade de Berkeley, vindo a falecer nesta mesma cidade californiana.
A perseguição intelectual sofrida pelo jurista não foi restrita dos adeptos do fascismo. Também sofreu severas críticas, todas com fundo ideológico, daqueles militantes da doutrina comunista. Vê-se, pois, que o pensamento de Kelsen não fazia unanimidade. Apesar disso, os princípios fundantes de seu raciocínio jurídico-científico prevaleceram e hoje são respeitados e amplamente acatados, servindo de base para muitas das instituições jurídicas que sustentam o dogmatismo jurídico ideal.
Em 2011, foi lançada a versão em língua portuguesa da "Autobiografia de Hans Kelsen" (Forense Universitária, Rio de Janeiro), traduzida diretamente do alemão por Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto, com estudo introdutório de José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior.
Concepções jurídicas
Teoria Pura do Direito
No campo teórico, o Jurista procurou lançar as bases de uma Ciência do direito, excluindo do conceito de seu objeto (o próprio Direito) quaisquer referências estranhas, especialmente aquelas de cunho sociológico e axiológico (os valores), que considerou, por princípio, como sendo matéria de estudo de outros ramos da Ciência, tais como da Sociologia e da Filosofia. Assim, Kelsen, por meio de uma linguagem precisa e rigidamente lógica, abstraiu do conceito do Direito a ideia de justiça, porque esta, a justiça, está sempre e invariavelmente imbricada com os valores (sempre variáveis) adotados por aquele que a invoca, não cabendo, portanto, pela imprecisão e fluidez de significado, num conceito de Direito universalmente válido.Uma de suas concepções teóricas de maior alcance prático é a ideia de ordenamento jurídico como sendo um conjunto hierarquizado de normas jurídicas estruturadas na forma de uma pirâmide abstrata, cuja norma mais importante, que subordina as demais normas jurídicas de hierarquia inferior, é a denominada norma hipotética fundamental, da qual as demais retiram seu fundamento de validade. Com o tempo Kelsen concretiza sua formulação afirmando que tal norma fundamental é a norma de direito internacional que aduz que os pactos devem ser cumpridos. Todavia, muitos constitucionalistas se apropriaram da teoria da pirâmide Kelseniana e formularam modelos nos quais a constituição surge como norma fundamental, modelos dos quais se extrairia o conceito de rigidez constitucional, o que vem a possibilitar e a exigir um sistema de tutela da integridade da Constituição. Apropriação e modificação, uma vez que Kelsen possuía uma visão monista do Direito, com primazia do Direito Internacional sobre o nacional e por isso seria contraditório considerar a Constituição de um Estado como norma fundamental, uma vez que na verdade a validade da Constituição estatal deriva do Direito Internacional.
Sobre a teoria kelseniana é de grande relevância o volume do filósofo do direito italiano Mario G. Losano (a cura di), "Forma e realtà in Kelsen", Comunità, Milano 1981, 229 pp. (Trad. em espanhol: "Teoría pura del derecho. Evolución y puntos cruciales", Bogotá 1992, XVI-267 pp.). O autor é também organizador do volume que ilustra a polêmica entre Hans Kelsen e Umberto Campagnolo, a propósito do direito internacional, cuja edição brasileira é Hans Kelsen - Mario G. Losano, "Direito Internacional e Estado Soberano", Martins Fontes, São Paulo 2002.
Constituição da Áustria
Dentre as inúmeras contribuições do jurista para o mundo prático do Direito, pode ser citada a Constituição da Áustria de 1920 (a "Oktoberverfassung"), redigida sob sua inspiração. Sob a influência do pensamento de Kelsen, esta Carta Política Austríaca inovou às anteriores, introduzindo no Direito Positivo o conceito de controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos como função jurisdicional ao cargo de um Tribunal Constitucional, incumbido da função exclusiva de guarda da integridade da Constituição. A partir daí, a jurisdição constitucional pôde ser seccionada em duas vertentes: a jurisdição constitucional concentrada (controle concentrado da constitucionalidade) e a jurisdição constitucional difusa (controle difuso da constitucionalidade). Este último modo de guarda da Constituição (difuso) já era praticado nos Estados Unidos (v. Caso Marbury contra Madison). No Brasil, sob a égide da Constituição Federal de 1988, a jurisdição constitucional é praticada dos dois modos: o concentrado, por meio de ações próprias da competência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Justiça Estaduais (exame da compatibilidade das leis e atos normativos estaduais e municipais com a Constituição Estadual), e o difuso, executado nos autos de quaisquer ações (e dos recursos a estas inerentes) da competência de qualquer órgão jurisdicional (= juizes e tribunais).Guarda da constituição
Um dos principais rivais que Kelsen teve em sua carreira foi o nazista Carl Schmitt, também famoso por sua forte fé católica. Com Schmitt, Kelsen travou o famoso debate sobre quem deveria ser o Guardião da Constituição (a expressão “guarda da Constituição” aparece na Constituição Federal brasileira em seu art. 102, que a atribui ao STF, bem como em seu art. 23, I).Para Schmitt, em obra publicada originalmente em 1929 sob o título "Das Reichgerichts als Hüter der Verfassung", e republicada em uma versão ampliada em 1931, sob o título de "O Guardião da Constituição" (Der Hüter der Verfassung)1 , a Guarda da Constituição era uma função de natureza política, e não jurídica, e, portanto, somente o presidente do Reich poderia desempenhar essa função, e, com a rápida ascensão do Partido Nazista, em pouco tempo o presidente do Reich passaria a ser ninguém menos que Adolf Hitler. Ainda no ano de 1931, Kelsen publicou uma reposta com o título “Quem deve ser o guardião da Constituição?”.2 Em tal obra, refutou o argumento de Schmitt, expressando que, se por "natureza política" Schmitt entendia a solução de controvérsias de grande repercussão social, isso não a diferenciava da "natureza jurídica", pois o Direito, assim como a política, sempre teve a função de solucionar questões sociais controversas de grande repercussão, e defendeu a importância de tal função ser desempenhada por um Tribunal Constitucional em uma democracia moderna, formado por magistrados, profissionais preparados, o que garantiria uma maior imparcialidade nas decisões, especialmente quando se tratasse de minorias ou de questões relacionadas a opositores do governo, sendo a sua inspiração para a redação da Constituição Austríaca de 1920.3
Entretanto, a teoria que triunfou na época foi a de Schmitt, devido a ascensão do III Reich alemão. A teoria de Kelsen só veio a triunfar no pós-guerra, com o restabelecimento da democracia.
Sobre a inconstitucionalidade
Kelsen, reconhecido por sua grande criatividade, foi também o criador da teoria da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade nos sistemas jurídicos da família Civil Law.Tal teoria foi desenvolvida ainda na década de 1910, utilizada na Constituição Austríaca de 1920, e escrita inicialmente apenas em seu artigo "A Jurisdição Constitucional" (título original "Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit")4 , publicado originalmente em 1928.
Tal teoria foi primeiramente adotada na Lei Constitucional-Federal Austríaca de 1920, em seu art. 140.5
Tal constituição foi seriamente modificada com a ascensão do nazismo e tal dispositivo não foi colocado em efeito na época, vindo a ser posto em prática somente após a II Guerra Mundial, quando a redação original de tal Constituição foi revigorada, sendo tal teoria adotada também em vários outros países do mundo, através de Constituições, Leis, ou mesmo apenas por interpretação judicial.
No Brasil, tal teoria veio a ser adotada expressamente apenas em 1998 com a Lei nº 9.868 que em seu artigo 27 expressa:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Além do Direito
Além das contribuições de Hans Kelsen para a ciência jurídica, há, em sua vasta produção literária, parte não restrita ao Direito. O jurista discorreu, também proficuamente sobre política, sociologia e religião. Foi um respeitado teórico da democracia (sobre este tema, ver a coletânea de artigos de sua autoria publicada sob o título A Democracia. Tradução Vera Barkow et al, São Paulo: Martins Fontes, 1993), bem como da justiça (sobre este tema leiam-se, especialmente O que é a Justiça? e A Ilusão da Justiça, ambas publicadas pela Martins Fontes). A contraposição, ademais, que se faz entre o Direito e a Justiça na obra de Hans Kelsen serve de base para teorias que apontam em seu pensamento uma dupla face (vide, a respeito, o trabalho O Direito e Justiça - a dupla face do pensamento kelseniano, publicado pela Editora Del Rey, de autoria de Jarbas Luiz dos Santos).Caso fosse amplo o conhecimento de sua obra em todas suas vertentes, grande parte das críticas sofridas por Kelsen revelar-se-iam inconsistentes, visto ser possível extrair, com razoável precisão, do conjunto de sua produção literária, as diferenças entre o Kelsen jurista científico e o Kelsen doutrinador político, desvanecendo-se, por conseguinte, a crítica acerca ter buscado o Cientista Jurídico Austríaco a pura e simples redução da ideia de Direito a um mero sistema lógico, desprovido de conteúdo. Suas obras acerca da Justiça e do Direito Natural bem ilustram essa constatação, havendo até mesmo como se falar em interesses diversos e em dupla face do pensamento kelseniano (uma fase tida como "científica" e outra "metafísica").
Hans Kelsen buscou na Teoria Pura estabelecer um conceito universalmente válido de Direito, que independesse da conjuntura em que fosse aplicado. E esse escopo foi, em grande parte, alcançado.
Principais obras do autor
- (1934) Teoría General del Estado. Barcelona, Editorial Labor.
- (1945) Naturaleza y Sociedad. Buenos Aires, Editorial Depalma.
- (1951) The Law of the United Nations. Nova York, Frederck A. Praeger
- (1952) Principles of International Law. Nova York, Reihart and Company
- (2000d) A Democracia. São Paulo, Martins Fontes.
- (2002) Direito Internacional e Estado Soberano. São Paulo, Martins Fontes.
- (2003) Jurisdição Constitucional. São Paulo, Martins Fontes.
- (2003) O Estado como Integração. São Paulo, Martins Fontes.
- Teoría Comunista del Derecho. Buenos Aires, Emece.
- (1996). Teoria Geral das Normas. Sérgio Antônio Fabris: Porto Alegre.
- (1998) O problema da justiça. São Paulo, Martins Fontes.
- (2000a) Teoria Pura do Direito. São Paulo, Martins Fontes.
- (2000b) Teoria Geral do Direito e do Estado São Paulo, Martins Fontes.
- (2000c). A Ilusão da Justiça. São Paulo, Martins Fontes.
- (2001) O que é justiça?. São Paulo, Martins Fontes.
- (2011) Autobiografia de Hans Kelsen. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
Referências
- ↑ Texto traduzido para o português sob o título de “O Guardião da Constituição” (Del Rey, 2006).
- ↑ Texto incluído na compilação de textos de Kelsen traduzidos para o português sob o título de “Jurisdição Constitucional” (São Paulo, Martins Fontes, 2003).
- ↑ MENDES, Gilmar. Apresentação a tradução para o português do livro “O Guardião da Constituição”. Disponível em http://www.conjur.com.br/2008-nov-11/filosofo_entre_fausto_sanctis_gilmar_mendes Acesso em 06 de novembro de 2009.
- ↑ Texto também incluído na compilação de textos de Kelsen traduzidos para o português sob o título de “Jurisdição Constitucional” (São Paulo, Martins Fontes, 2003).
- ↑ HECK, Luís Afonso. Jurisdição Constitucional e Legislação Pertinente no Direito Comparado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 124-126.
Referências bibliográficas
- SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
- SANTOS, Jarbas Luiz dos. O Direito e Justiça - a Dupla Face do Pensamento Kelseniano. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
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